16.3.15

Zériplo, vida e morte de uma cidade

          Com o calor que o Sol irradiava, todos na cidade se lembraram dos dias em que as feiras ocupavam as ruas e alamedas com barracas de melões, morangos e abacates. Nostálgicos, repletos de inverno nos corações e profundas janelas nos olhos, os cidadãos repetiram em uníssono naquela manhã, ao despertarem, que estavam cansados de serem apenas joguetes das multinacionais que ocupavam pouco a pouco os fétidos metros quadrados de Zériplo, cidade dos postes estilhaçados, aquela que repentinamente se tornara um marco no mundo dos negócios e que exalava a destruição de papéis voadores circulando por entre as pernas das torres de ferro e eletricidade tingida de vermelho. O Grande Albino Zacarias, cego senhorzinho diariamente sentado num caixote ao centro da praça central de Zériplo, cantava que a vida era repleta de doçuras e amarguras, e os muitos passantes não hesitavam em reprimi-lo, qualificando-o como mais um produtor de chavões inócuos, um mero lunático cheio de visões preestabelecidas das coisas, pois apenas a inércia dos sons do universo que a ele chegava não poderia dar conta de expressar as artérias da humanidade percorrendo sangue e areia e gramados e tudo aquilo que se parece com o azul do céu. “Nem sempre guiamos os melhores veículos” – diziam a ele os passantes – “aqueles que soam como gaitas quando aceleram, e que produzem ventinho pelas frestas dos vidros abertos, balançando cabelos e barbas compridas. Por isso o censuramos, Grande Albino Zacarias, pois nossa infelicidade de aceleração requer um bode expiatório.” Alguns passantes, no entanto, aqueles que também viam na praça, além de Zacarias, os anões da energia bailando em estalos de elétrons, esqueceram-se de suas insatisfações automotivas, pois sentiram a propagação feroz das coisas pelo espaço e como o espaço integrava-se às coisas e não apenas convivia com elas passivamente. E assim puderam concluir que a vida está, de fato, repleta de doçuras e amarguras, como cantava o Grande Albino, e que essa era a realidade crua de Zériplo. Organizaram, então, um motim em nome da canção do velho Zacarias, “Amaroce”; um motim que muitos anos depois desembocaria em sanguinolenta guerra civil, durante a qual muitos dos idosos de Zériplo bailavam incessantemente pela estratosfera urbana com seus cachimbos fumegantes, vigias detentores do voo, narrando em alto e bom som através de megafones que sempre que houvesse uma vistoria nas montanhas próximas aos acampamentos dos ciganos nos arredores da cidade, não haveria por que temer uma revolta dos índios ou de outros povos não civilizados que pudessem trazer o distúrbio da ordem social. Esses idosos, ora adeptos do Grande Albino, ora adeptos de sua execução, votavam nas assembléias de ambas as partes do conflito; camuflados, discursavam cegamente a favor da conservação dos monumentos públicos e das estátuas equestres e depois iam embora. Fediam e fediam, e não se lembravam de que o homem deve ser cheiroso, o que tornava as assembléias lugares bastante desagradáveis de se frequentar. O mau cheiro acabou por esvaziar os locais de reunião, aumentando ainda mais a indignação geral e o caos disperso pelas ruas. Com o frisson que tomava Zériplo naqueles dias, até mesmo os números se rebelaram, saindo de placas, painéis, livros e outros artefatos nos quais habitavam e construíam sentido. Numa manhã qualquer, despencaram de suas plataformas e começaram a atravessar todas as ruas da cidade simultaneamente, sempre na faixa; mesmo assim, acabaram atropelados pelos cálculos errôneos dos engenheiros da propriedade privada, esses que, enquanto dirigem, não enxergam nada além do próprio alqueire de terra que cheira a papel almaço e restos de cinzas de cigarro. O Grande Albino, aquele que deveria profetizar e guiar a redenção de Zériplo, morreu engasgado com um caroço de azeitona num almoço de domingo, e logo foram levantadas suspeitas de um assassinato em massa planejado pelos golpistas contrários à implantação do regime colorista de mestre Zacarias. Zériplo terminou por implodir antes que tudo isso pudesse ser averiguado pelo tribunal de guerra, uma vez que suas tubulações sucumbiram ao exorbitante número de pétalas de rosas jogadas na nascente do córrego que alimentava a cidade, um ato terrorista sem autoria em homenagem ao Grande Albino. Durante décadas seus edifícios e habitantes foram desintegrando-se em câmera lenta, tornando-se poeira no eterno momento da dispersão. E muitos, muitos anos depois dessas décadas (mas ainda em câmera lenta), a cidade enfim afundou no solo, e nada restou dela além de um surrado guarda-chuva preto que uma senhorinha grisalha de nome Mitocôndria usa para passear com seu poodle Jorge em dias chuvosos.

Fresta frágil

É carnaval -- a felicidade entrevista.
As gentes roubam pestes para si
em cânticos de faca e de ferida.

A vida, toda linda, travestida
como um sábado infindo.
Quarta-feira de cinzas, eu sinto,
é o último domingo.

Auto-elegia I

Pai, papai, o que deu na sua cabeça?
Sair assim, só para comprar cigarro
naquela padaria looonge à beça,
e eu aqui esperando, pregado,
mamãe se despindo às avessas?

Humpty Dumpty

Ninguém nasce em cima do cavalo.
Para cair, é preciso erguer-se ao alto,
nalgum carro solar da própria mente,
pensar em si como bicho que sente
ser diverso. Cria que cavalga criaturas
e que as cavalga antes porventura.

12.1.15

10 poemas italianos


Bilhetinho de sal

É na meada da via que a vida te atravessa,
Joana. Tempo justo para teceres sem pressa
a tua parola muda. Já a tens contigo:
nasce e morre muitíssima gente na China
e, no entanto, não te faltam dedos para contar.
Faz calor em São Paulo, faz falta a brisa do mar,
a chuva passa e o lume do teu olho permanece
relâmpago no poço.

Todo teu, mas menos,
Eu

10.12.14

Janeiro

Até penso em pensar a morte do irmão,
mas a tarde modorra borda um símile de pão.
E da quentura do pão que vem o cheiro.
Fossem obras das mãos frias do padeiro,
todas as coisas, mesmo a carne do irmão,
exumariam do miolo o mesmo cheiro.

8.12.14

da pele aos panos
em tecidos
vedado,
roendo
sapatos poças vigílias,
amigo
encardido
de reflexos furados,
sombra de giz
procriando
nos postes,
rastreio 
ranhuras
na lousa do
mundo,
pobre e nômade
poeira adiada.

Tem, mas acabou

                             p/ Dante Felgueiras

Jorge, outros sofreram muito mais e melhor do que você,
não basta apenas levar porrada. La crème de la crème já andou por aí
cagando e sentando em cima. Ceteris paribus, os piedosos
continuarão envilecendo e os canalhas, tendo todo o afeto.
Com alguma sorte, para medíocre te aproveitem.
O mais é o mais, como se o diabo estivesse ao alcance de todos,
o vário é que algumas bucetas ainda se ocupem de comer os pintos
felizes, et cetera. Talvez coubesse um imperativo, do tipo:
“Se enxerga!” ou “Cresça e desapareça”. Keep calm,
o arlequim ainda estará te esperando na esquina.
Jorge, do seu nariz não saem pérolas. Ceteris paribus,
vai dar merda e da pior maneira possível. Numa noite dessas,
o forasteiro contempla as paredes do bar e pensa,
de si para si, “quanta loucura não há de ter nestas garrafas?”.
Depois, a gente acostuma. Chove, mas tem a porra do efeito esponja.
Há o amor, é verdade, mas o desamor é muito mais cool.
Para todos os eletrodomésticos há um manual de instruções.
Para todos os valores de uso você pode clicar no ícone de configurações
(aquele que é uma engrenagezinha). Quando você se cansar,
o cata-bagulho passa na sua casa ou, simplesmente,
como um cioso proprietário, você exerce o seu sagrado direito de deixar seu imóvel [ocioso.
Não tá fácil pra ninguém. Just repeat after me
over and over again. 

5.11.14

Também andei ao sol

Também andei ao sol,
o senhor da vida, sabe? (risada de escárnio da porra).
Como podem não se importar com o aguaceiro?
Criança, isso é só o fim
a ponte de Londres e a merda toda.
Hoje é o primeiro dia... e depois, bem, depois não há mais dias,
o tempo é apenas aquilo que os relógios mordem,
navalha de Ockham na carne.
Como podem não se importar?
Os perdedores e talvez os vis e
aqueles que só contam com o próprio abraço
no longo caminho até a terra dos mortos.
Qual o quê? Uma véspera de víscera, uma perfídia, uma trapaça, algo menos
do que esta fadiga da verdade.
Já não quero mais ser cínico, mas é o que tem pra hoje,
amanhã os edifícios continuarão a ser erguidos,
os homens (sobretudo estes que andam a balançar uma vírgula no meio das pernas) discutirão coisas como Arte, Ciência, História
e Dinheiro.
As flores e as árvores ainda estarão por aí.
Criança, isso é só.
A queda nos espreitando,
os dados quietos antes do lançamento
e o silêncio que é só por não se ter mais nada a dizer.
Nem resto