Com o calor que o
Sol irradiava, todos na cidade se lembraram dos dias em que as feiras ocupavam as
ruas e alamedas com barracas de melões, morangos e abacates. Nostálgicos, repletos
de inverno nos corações e profundas janelas nos olhos, os cidadãos repetiram em
uníssono naquela manhã, ao despertarem, que estavam cansados de serem apenas
joguetes das multinacionais que ocupavam pouco a pouco os fétidos metros
quadrados de Zériplo, cidade dos postes estilhaçados, aquela que repentinamente
se tornara um marco no mundo dos negócios e que exalava a destruição de papéis
voadores circulando por entre as pernas das torres de ferro e eletricidade
tingida de vermelho. O Grande Albino Zacarias, cego senhorzinho diariamente
sentado num caixote ao centro da praça central de Zériplo, cantava que a vida
era repleta de doçuras e amarguras, e os muitos passantes não hesitavam em
reprimi-lo, qualificando-o como mais um produtor de chavões inócuos, um mero lunático
cheio de visões preestabelecidas das coisas, pois apenas a inércia dos sons do
universo que a ele chegava não poderia dar conta de expressar as artérias da
humanidade percorrendo sangue e areia e gramados e tudo aquilo que se parece
com o azul do céu. “Nem sempre guiamos os melhores veículos” – diziam a ele os
passantes – “aqueles que soam como gaitas quando aceleram, e que produzem
ventinho pelas frestas dos vidros abertos, balançando cabelos e barbas compridas.
Por isso o censuramos, Grande Albino Zacarias, pois nossa infelicidade de
aceleração requer um bode expiatório.” Alguns passantes, no entanto, aqueles
que também viam na praça, além de Zacarias, os anões da energia bailando em
estalos de elétrons, esqueceram-se de suas insatisfações automotivas, pois
sentiram a propagação feroz das coisas pelo espaço e como o espaço integrava-se
às coisas e não apenas convivia com elas passivamente. E assim puderam concluir
que a vida está, de fato, repleta de doçuras e amarguras, como cantava o Grande
Albino, e que essa era a realidade crua de Zériplo. Organizaram, então, um
motim em nome da canção do velho Zacarias, “Amaroce”; um motim que muitos anos
depois desembocaria em sanguinolenta guerra civil, durante a qual muitos dos
idosos de Zériplo bailavam incessantemente pela estratosfera urbana com seus
cachimbos fumegantes, vigias detentores do voo, narrando em alto e bom som através
de megafones que sempre que houvesse uma vistoria nas montanhas próximas aos acampamentos
dos ciganos nos arredores da cidade, não haveria por que temer uma revolta dos
índios ou de outros povos não civilizados que pudessem trazer o distúrbio da
ordem social. Esses idosos, ora adeptos do Grande Albino, ora adeptos de sua
execução, votavam nas assembléias de ambas as partes do conflito; camuflados,
discursavam cegamente a favor da conservação dos monumentos públicos e das
estátuas equestres e depois iam embora. Fediam e fediam, e não se lembravam de
que o homem deve ser cheiroso, o que tornava as assembléias lugares bastante
desagradáveis de se frequentar. O mau cheiro acabou por esvaziar os locais de
reunião, aumentando ainda mais a indignação geral e o caos disperso pelas ruas.
Com o frisson que tomava Zériplo naqueles dias, até mesmo os números se
rebelaram, saindo de placas, painéis, livros e outros artefatos nos quais
habitavam e construíam sentido. Numa manhã qualquer, despencaram de suas
plataformas e começaram a atravessar todas as ruas da cidade simultaneamente, sempre
na faixa; mesmo assim, acabaram atropelados pelos cálculos errôneos dos
engenheiros da propriedade privada, esses que, enquanto dirigem, não enxergam
nada além do próprio alqueire de terra que cheira a papel almaço e restos de
cinzas de cigarro. O Grande Albino, aquele que deveria profetizar e guiar a
redenção de Zériplo, morreu engasgado com um caroço de azeitona num almoço de
domingo, e logo foram levantadas suspeitas de um assassinato em massa planejado
pelos golpistas contrários à implantação do regime colorista de mestre
Zacarias. Zériplo terminou por implodir antes que tudo isso pudesse ser
averiguado pelo tribunal de guerra, uma vez que suas tubulações sucumbiram ao
exorbitante número de pétalas de rosas jogadas na nascente do córrego que
alimentava a cidade, um ato terrorista sem autoria em homenagem ao Grande
Albino. Durante décadas seus edifícios e habitantes foram desintegrando-se em
câmera lenta, tornando-se poeira no eterno momento da dispersão. E muitos,
muitos anos depois dessas décadas (mas ainda em câmera lenta), a cidade enfim
afundou no solo, e nada restou dela além de um surrado guarda-chuva preto que
uma senhorinha grisalha de nome Mitocôndria usa para passear com seu poodle
Jorge em dias chuvosos.
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