20.10.14

Um homem de costas

            P/ René Magritte

            Sua distância lacrada sugando-me. Os ombros, possantes, inflando as dobras do paletó negro, paletó-noite. É noite deveras, meus passos na rua, soando, seus passos na rua, soando: manto de delicados tambores, feitiço. Sua perseguição não a de atingir-me, mas a de afastar-se, manter-se longilíneo, intransponível silhueta.
            Desperto, durmo, aniquilo-me para aniquilar a fome. Amo: todo dia é dia de Inês, ainda que ao longe. Inconsciente, dôo-me à manufatura extenuante dos gestos universais. Gatos solicitam-me ternura em meios-fios, e se chove, abro com enfado o guarda-chuva negro que me segreda as cadências da vida em seu tecido. Recaio em surdez, sono. Mas prossegue: persegue-me incólume, em face, equidistante, atemporal, um homem de costas.
            Entro e saio de estabelecimentos corriqueiros, livrando-me temporariamente de seu dorso flutuante. Sorvo café, mastigo pão, e a garganta afagada apaga o encalço frontal. Leio, deitado no colchão, e as letras no papel compõem caravanas de constelações. A rua, porém, retorna, fatal, e reencontro-o ali, sua marcha mecânica em igual contraponto, espreitando-me sem olhos visíveis.
            Pouco a pouco a paranoia, em náusea. Seus ombros e passadas inatingíveis não cessando de estar, mesmo distantes da rua. Até as portas de costas. A antiga fotografia de meu pai menino, conselheira de gaveta, sussurra-me perseguição. Auroras sucedem-se, e meus olhos, em pânico, nas ranhuras do teto.
            Noites. Infindas. Escuro. Mas vem o dia em que, no meio do breu, entrevejo: uma luz além das horas, um dia de muitas manhãs. Sopra o sino da lonjura. Uma alameda é o que encontro, num relâmpago. Um chão de terra abaixo de meus pés pueris. Arbustos em procissão, uma nuvem inquieta por sobre seu verde. Burlado o muro do jardim proibido, sigo por suas vias de amplitude secreta, refletindo sobre a luz em flores e gramados. Ao bem-estar roubado soma-se a sombra ameaçadora da entidade que se sabe invadida, e o jardim me repele em seus sopros de antigas orações.
            Levanto-me do colchão. A escuridão úmida da noite me consome as retinas. O jardim proibido, serpente, desliza rasteiro sob meus poros. Sigo até a janela. Um homem de costas, pedestal do poste aceso, encara-me em sua ausência de face.
            Desço à rua: a caçada do caçador, sorrateira, lentamente. Passos novamente em laço. A permanente equidistância, porém, me aflige. Corro; o homem de costas andando, sempre andando; e prossegue o percurso, o acossar e ser acossado, por ruas sem nome, cidades sem tempo, estradas sem céu.
           Aproximamo-nos de um triste balneário. Nossos passos na areia, que desfaz-se em sua miudeza de eras pelas solas dos sapatos. E o mar bem mais perto, a revolver em farfalho e a rugir socos graves. A lua dourada paira, e sua cauda luminosa que na água oscila traz Inês, traz o jardim proibido. O homem de costas segue por sua senda, o terno já molhado revestindo-se em ouro. Tomo o mesmo rastro. Devorados pelas ondas, destruímo-nos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário