“Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.”
- Carlos Drummond de Andrade
É
triste, sim, esta guerra, famigerada guerra, que nos assola e atola na
invencionice maltrapilha, na invenção de nossa própria demolição, no embuste,
na emboscada, na beligerância transfiguradora, pois não é nos diferentes
objetos que se escondem as armas usadas pelos homens, é nos homens que se
escondem as armas nas quais se transformam os diferentes objetos, nas metamorfoses do
Mal que nos serpenteiam as vísceras, parindo artilharia onde sopra
fraternidade, gestando bombas em rosas, rifles em réguas, lâminas em lápis,
sabres em sábios, granadas em sapatos. Veja você, é tão precária a nossa situação,
há tantos e tantos anos já se arrasta esta guerra, que nada mais resta, todo o
ferro do mundo e demais metais de nossas minas foram consumidos na manufatura
de munição, e agora não passam de escombros fumegantes indicativos de
fracassadas campanhas militares, envenenando os solos, os ares e as águas. A
indústria bélica, rainha de fato do feudo planetário, já detém a quase
totalidade das ações nos mercados (poucas delas ainda permanecem em mãos de
Igrejas e famílias reais), e suas manobras comerciais monopolistas,
manipuladoras dos planos produtivos, transformam o valor de uso de todos os
nossos artefatos e engenhos da vida diária, e qualquer objeto, a qualquer
momento, pode passar do prosaico ao pretexto para a agressão. Céus, que
desventura, que tristeza! Agora os brancos cacos de antigas xícaras simpáticas
nas quais repousava o chá geram morteiros perfurantes; cadeiras guardiãs do
conforto de nossas ancas não passam de escudos ou madeira para alimentar
fogueiras que arrasam os terrenos; fofos cachecóis, outrora amantes dos
pescoços, chicoteiam com grande aflição os prisioneiros das tropas. Ontem mesmo
escutei, em meu radinho à pilha (derradeiro bastião da comunicação atual, pois tevês e computadores já viraram pólvora para explosões), o relato de um repórter sobre o bombardeio
das forças aliadas em Londres, um bombardeio cujas bombas, caindo sobre as
amplas e áridas praças de concreto cheias de vento cru e gélido, eram
guarda-chuvas fechados, em vertigem suicida; quando suas cabeças encontravam o
chão, abriam em explosão, e toda a população da cidade foi sendo, assim,
sistematicamente atacada por esses utensílios sem qualquer propósito bélico
original. É triste, sim, esta guerra, famigerada guerra, que vai deixando a
superfície da terra recoberta por chapelões e varetas e vestidos e livros e
cachimbos e cruzes e relógios e tudo o mais, tudo transformado em tristonha
aparelhagem da destruição. Em breve, muito em breve, mal se poderá caminhar em
terra tão arrasada pelo despropósito.
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