8.10.14

A guerra

“Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição

porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.”

- Carlos Drummond de Andrade


            É triste, sim, esta guerra, famigerada guerra, que nos assola e atola na invencionice maltrapilha, na invenção de nossa própria demolição, no embuste, na emboscada, na beligerância transfiguradora, pois não é nos diferentes objetos que se escondem as armas usadas pelos homens, é nos homens que se escondem as armas nas quais se transformam os diferentes objetos, nas metamorfoses do Mal que nos serpenteiam as vísceras, parindo artilharia onde sopra fraternidade, gestando bombas em rosas, rifles em réguas, lâminas em lápis, sabres em sábios, granadas em sapatos. Veja você, é tão precária a nossa situação, há tantos e tantos anos já se arrasta esta guerra, que nada mais resta, todo o ferro do mundo e demais metais de nossas minas foram consumidos na manufatura de munição, e agora não passam de escombros fumegantes indicativos de fracassadas campanhas militares, envenenando os solos, os ares e as águas. A indústria bélica, rainha de fato do feudo planetário, já detém a quase totalidade das ações nos mercados (poucas delas ainda permanecem em mãos de Igrejas e famílias reais), e suas manobras comerciais monopolistas, manipuladoras dos planos produtivos, transformam o valor de uso de todos os nossos artefatos e engenhos da vida diária, e qualquer objeto, a qualquer momento, pode passar do prosaico ao pretexto para a agressão. Céus, que desventura, que tristeza! Agora os brancos cacos de antigas xícaras simpáticas nas quais repousava o chá geram morteiros perfurantes; cadeiras guardiãs do conforto de nossas ancas não passam de escudos ou madeira para alimentar fogueiras que arrasam os terrenos; fofos cachecóis, outrora amantes dos pescoços, chicoteiam com grande aflição os prisioneiros das tropas. Ontem mesmo escutei, em meu radinho à pilha (derradeiro bastião da comunicação atual, pois tevês e computadores já viraram pólvora para explosões), o relato de um repórter sobre o bombardeio das forças aliadas em Londres, um bombardeio cujas bombas, caindo sobre as amplas e áridas praças de concreto cheias de vento cru e gélido, eram guarda-chuvas fechados, em vertigem suicida; quando suas cabeças encontravam o chão, abriam em explosão, e toda a população da cidade foi sendo, assim, sistematicamente atacada por esses utensílios sem qualquer propósito bélico original. É triste, sim, esta guerra, famigerada guerra, que vai deixando a superfície da terra recoberta por chapelões e varetas e vestidos e livros e cachimbos e cruzes e relógios e tudo o mais, tudo transformado em tristonha aparelhagem da destruição. Em breve, muito em breve, mal se poderá caminhar em terra tão arrasada pelo despropósito.

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