“A representação
do cosmos como
extensão
infinita e plena resulta de
uma mistura,
levada ao extremo,
de criação
laboriosa e de livre
reflexão
interior.”
- Franz Kafka
Em caravana, engolindo os trilhos
dos instantes, os vagões encadeados de meus “estares” mundanos conduziram-me
caprichosamente ao jardim da árvore-cosmos. Como? Não posso precisar. Resta-me
tentar resgatar, numa tênue nostalgia retroativa, a luz sobre o vulto límpido e
contorcido que recuou. Pois numa combinação aleatória de processos reais plenos
em integridade da experiência, descobri que residia a chave para o golpe do
além, do algures. Tudo começa com minhas alpargatas arrastando-se no assoalho
ao sabor de minhas passadas domésticas. O ruído conjunto, de solado de corda
alisando a madeira gasta do piso, vai progressivamente povoando meus ouvidos,
como se parte inerente de suas cavidades. A isso vem somar-se o gosto de chá
carregado no interno das bochechas, um gosto marrom e cheio encaixando-se com
notável precisão sobre o tabuleiro sonoro que minha circulação pela casa
constrói. E a isso vem ainda somar-se a chanson
de Trenet que eu vinha murmurando desde cedo, Que reste-t-il de nos amours, penando para lembrar-me da ordem
correta das estrofes: Un petit village,
un vieux clocher... e voilà, não
é a lembrança certeira da letra, é outra, eis que milagrosamente gira a última
volta do parafuso: o vieux clocher faz
brotar a diáfana lembrança da sonoridade especial que o sino adquiria quando,
em minha infância, eu e minha mãe deixávamos o interior da igreja após a missa
nas manhãs de domingo. Nesse meio-tempo, minhas alpargatas serelepes, seres
quase autômatos, já me haviam conduzido até a janela de meu quarto, à beira da
qual comecei a observar, a princípio despretensiosamente (mas é justamente a
despretensão a maior responsável por mover montanhas), o fremir lânguido das
folhas da árvore do quintal de casa. Na inteireza de meu espírito eu absorvia a
sobreposição de tudo que me conduzira até ali, alpargata, chá, chanson, sino, e esses elementos
díspares e aparentemente desconexos metamorfoseavam-se, sobrevoando
profundidades misteriosas, em algo muito mais complexo e vivo do que a mera
junção das partes, um organismo que ganhava robustez e consistência, ainda que
repleto da maleabilidade captadora com que regia suas operações. Então o fremir
das folhas, totalmente entregue ao vento e à noite que crescia, de vibração
quase imperceptível passou a bailado de deuses, algum resquício de uma força
invisível e nodosa foi se afeiçoando e se apoderando do movimento que a brisa
dava à árvore. A escuridão do entorno indicava prestativa que a noite já se
transformara em madrugada, e apenas o brilho inerente do céu e de minha pequena
lamparina sobre a escrivaninha flutuavam para abraçar docemente a intensidade
do espetáculo que aos poucos me tragava. O fio condutor de “estares” que me
levara até a beirada da janela não só pulsava em mim sua eletricidade, como
fazia desembocar no balé das folhas discretamente iluminadas uma frequência
desmedida de porta lentamente se abrindo solitária, un paysage si bien caché. O pequeno corte de fôlego veio logo em
seguida. Num ímpeto predador, aquela árvore de trejeitos delicados foi
derrubando, torre a torre, os bastiões que constituíam a fronteira de mim mesmo.
Então, violentamente, o repuxo, a sucção: estourou em minha presença,
dissipando-a, o reino de esplendor sólido e uno da argamassa espaço-temporal
liberta das habituais concessões de cronologia e geografia com as quais se
situa em nosso mundo diário. Foi possível, durante um instante que de tão curto
beirou a eternidade, absorver o cosmos inteiro em poeira eterna. Tamanha
grandeza condensada, sem roubar minha visão, cegou-me por um tempo cuja duração
não saberia determinar a partir dos moldes de contagem convencional. Sei que
tudo foi curto, rápido; mas na instantaneidade dessa queda livre é que nasceu a
vertigem mais aguda, o adensamento mais profundo das escalas de espaço e tempo
que nos governam, camada após camada. Ao fim, dando por mim, notei que o
fantasma do universo em sua plenitude dissolvia-se ternamente no sibilar da
noite. A árvore voltou a ostentar apenas folhas e galhos em gemido discreto, e
não mais a pureza do vazio pinicado de estrelas. A árvore deixou de “ser” o
cosmos para, mais uma vez, simplesmente “estar” no cosmos. Pisquei largamente,
sentindo nas pálpebras uma espécie de dilatação em meus olhos. Depois sentei-me
em meu baú. Enrolei um cigarro meticulosamente, acendi-o. Em seus tragos
imaculados retomei o curso de minha pequenez.
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