28.9.14

A árvore-cosmos

“A representação do cosmos como
extensão infinita e plena resulta de
uma mistura, levada ao extremo,
de criação laboriosa e de livre
reflexão interior.”

- Franz Kafka
           

            Em caravana, engolindo os trilhos dos instantes, os vagões encadeados de meus “estares” mundanos conduziram-me caprichosamente ao jardim da árvore-cosmos. Como? Não posso precisar. Resta-me tentar resgatar, numa tênue nostalgia retroativa, a luz sobre o vulto límpido e contorcido que recuou. Pois numa combinação aleatória de processos reais plenos em integridade da experiência, descobri que residia a chave para o golpe do além, do algures. Tudo começa com minhas alpargatas arrastando-se no assoalho ao sabor de minhas passadas domésticas. O ruído conjunto, de solado de corda alisando a madeira gasta do piso, vai progressivamente povoando meus ouvidos, como se parte inerente de suas cavidades. A isso vem somar-se o gosto de chá carregado no interno das bochechas, um gosto marrom e cheio encaixando-se com notável precisão sobre o tabuleiro sonoro que minha circulação pela casa constrói. E a isso vem ainda somar-se a chanson de Trenet que eu vinha murmurando desde cedo, Que reste-t-il de nos amours, penando para lembrar-me da ordem correta das estrofes: Un petit village, un vieux clocher... e voilà, não é a lembrança certeira da letra, é outra, eis que milagrosamente gira a última volta do parafuso: o vieux clocher faz brotar a diáfana lembrança da sonoridade especial que o sino adquiria quando, em minha infância, eu e minha mãe deixávamos o interior da igreja após a missa nas manhãs de domingo. Nesse meio-tempo, minhas alpargatas serelepes, seres quase autômatos, já me haviam conduzido até a janela de meu quarto, à beira da qual comecei a observar, a princípio despretensiosamente (mas é justamente a despretensão a maior responsável por mover montanhas), o fremir lânguido das folhas da árvore do quintal de casa. Na inteireza de meu espírito eu absorvia a sobreposição de tudo que me conduzira até ali, alpargata, chá, chanson, sino, e esses elementos díspares e aparentemente desconexos metamorfoseavam-se, sobrevoando profundidades misteriosas, em algo muito mais complexo e vivo do que a mera junção das partes, um organismo que ganhava robustez e consistência, ainda que repleto da maleabilidade captadora com que regia suas operações. Então o fremir das folhas, totalmente entregue ao vento e à noite que crescia, de vibração quase imperceptível passou a bailado de deuses, algum resquício de uma força invisível e nodosa foi se afeiçoando e se apoderando do movimento que a brisa dava à árvore. A escuridão do entorno indicava prestativa que a noite já se transformara em madrugada, e apenas o brilho inerente do céu e de minha pequena lamparina sobre a escrivaninha flutuavam para abraçar docemente a intensidade do espetáculo que aos poucos me tragava. O fio condutor de “estares” que me levara até a beirada da janela não só pulsava em mim sua eletricidade, como fazia desembocar no balé das folhas discretamente iluminadas uma frequência desmedida de porta lentamente se abrindo solitária, un paysage si bien caché. O pequeno corte de fôlego veio logo em seguida. Num ímpeto predador, aquela árvore de trejeitos delicados foi derrubando, torre a torre, os bastiões que constituíam a fronteira de mim mesmo. Então, violentamente, o repuxo, a sucção: estourou em minha presença, dissipando-a, o reino de esplendor sólido e uno da argamassa espaço-temporal liberta das habituais concessões de cronologia e geografia com as quais se situa em nosso mundo diário. Foi possível, durante um instante que de tão curto beirou a eternidade, absorver o cosmos inteiro em poeira eterna. Tamanha grandeza condensada, sem roubar minha visão, cegou-me por um tempo cuja duração não saberia determinar a partir dos moldes de contagem convencional. Sei que tudo foi curto, rápido; mas na instantaneidade dessa queda livre é que nasceu a vertigem mais aguda, o adensamento mais profundo das escalas de espaço e tempo que nos governam, camada após camada. Ao fim, dando por mim, notei que o fantasma do universo em sua plenitude dissolvia-se ternamente no sibilar da noite. A árvore voltou a ostentar apenas folhas e galhos em gemido discreto, e não mais a pureza do vazio pinicado de estrelas. A árvore deixou de “ser” o cosmos para, mais uma vez, simplesmente “estar” no cosmos. Pisquei largamente, sentindo nas pálpebras uma espécie de dilatação em meus olhos. Depois sentei-me em meu baú. Enrolei um cigarro meticulosamente, acendi-o. Em seus tragos imaculados retomei o curso de minha pequenez.

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